A incongruência que Não há bela sem senão é

Há coisas que me irritam. Nisso, não sou melhor nem pior do que ninguém. Ouvi dizer que há coisas que irritam outras pessoas que não eu. Surpreendeu-me um bocadinho mas depois passou e nem sequer me doeu. E isso foi positivo.

Uma das coisas que me irritam é não concordar com uma expressão que não tem ponta de verdade e que continua a ser usada como se nada fosse, passando impunemente à exclusão que merecia, se o mundo fosse mesmo um sítio como deve ser.

Não há bela sem senão é uma dessas frases. Nunca a percebi bem.

Uma bela é muito mais bela sem um senão. Aliás, eu diria mesmo que com senão uma bela não é propriamente bela. Se tem senão, esse senão pode muito bem não ser bela. O senão é, portanto, o desmancha-prazeres da vida.

Se a vida é bela, se não há bela sem senão, e se o senão não deixa a bela ser tão bela quanto poderia ser (se não tivesse senão), então é o senão que está aqui a estragar a equação toda.

Para mim, a vida só seria verdadeiramente bela sem os senãos e arrisco mesmo um “Rai’s partam os senãos e a actividade deles, pá!”, só para soltar a bílis em relação a este assunto.

Imagine-se o seguinte cenário. Alguém faz amor, numa qualquer divisão da casa (não vou especificar, para que seja possível ao leitor ter essa réstia de fantasia que ajuda sempre na imaginação de um bom cenário deste tipo). Tudo é belo. Tudo está bem…. A campainha toca. A primeira reacção é dizer que “não há bela sem senão”, sendo, no caso, a campainha o senão desta equação. Mais do que desmancha-prazeres, este senão seria um verdadeiro estraga-f… isso.

Para vincar esta minha maneira de pensar, dou ainda outro exemplo. Giselle Bundchen. É bela. Ali não há senão. Se houvesse senão, não seria tão bela quanto é. Quero dizer… ter senão… já teve. Andou enrolada com o Di Caprio durante uns tempos. Foi o senão dela, gostar de tipos com 1,20m de altura. Obviamente, isto só é/foi um senão para os tipos com mais de 1,20m de altura, como eu. Todos os outros, sentiram ali que tinham uma hipótese com uma das miúdas mais giras do mundo.

Mas acho que isso passou e nem sequer lhe doeu. Temos todos (os altos e os baixos) que ficar felizes por isso.

Já não há Polaroids para colar ao tecto


Diz-se que a vida é feita “disto e daquilo”.

Para além de lamentar profundamente o facto de nunca ninguém me ter definido com exactidão o que era “isto” ou “aquilo”, eu atrevo-me a acrescentar que a vida é feita (também) de constatações.

Ao constatar o óbvio e/ou o menos óbvio, estamos a assimilar conhecimentos, no mínimo, porque até ao momento da constatação não sabíamos (ou não tínhamos percebido que não sabíamos) o que acabámos de constatar. Ou qualquer coisa do género…

Por exemplo, eu acabo de constatar que já não se fazem máquinas Polaroid. A empresa criadora do conceito de fotografia instantânea disponível para todos abriu falência e fechou as portas (curioso como o fecho de uma coisa significa sempre a abertura de outra, e vice-versa).

Ao constatar este facto, uma significativa parte de mim (a parte que, de facto, se preocupa com este tipo de coisas) ficou devastada. Principalmente porque estava mesmo a precisar de uma máquina Polaroid e agora, “descontinuada” (é o termo usado pelos funcionários das lojas de fotografia) que foi a produção do produto, torna-se uma tarefa extremamente complicada encontrar agora uma máquina para comprar, mesmo que seja ainda um artigo super popular.

Simultaneamente, apercebo-me de que nunca mais ouvi falar das colas Araldite. Uma rápida pesquisa na net “diz-me” que, ao contrário das Polaroids, o produto não foi “descontinuado” e ainda existe, embora nunca mais se lhe tenha feito publicidade. Aliás, a falta dessa publicidade é tanto mais notada pelo facto de ser mítico o anúncio às colas Araldite que há cerca de vinte anos surgiu nos ecrãs portugueses: Araldite - Capaz de colar cientistas ao tecto. Como seria possível esquecer este conceito?

No entanto, estou em crer que terá sido esse mesmo conceito que determinou o “desaparecimento” (apenas aparente, é certo) da Araldite. Acho que lhes correu um bocado mal a publicidade enganosa resultante de anunciar que seria possível colar cientistas ao tecto com os dois tubos de cola, cujos conteúdos (combinados) resultariam numa substância infalivelmente colante. Penso que, mais tarde ou mais cedo, toda a gente percebeu que a Araldite, afinal, não era suficiente para colar cientistas ao tecto. E ninguém gosta de ser vítima de publicidade enganosa.

Se, por influência do spot publicitário, houve mesmo gente a tentar colar cientistas ao tecto para verificar a veracidade do slogan do anúncio (talvez tenha sido por isso que terá havido um período em que os cientistas quase entraram em extinção - por causa dessa obstinada caça ao cientista para colá-lo ao tecto), cedo foi possível apurar que o cientista que se tentou colar ao tecto caiu “redondo”, de cabeça no chão. A comunidade consumidora não gostou de se sentir burlada e a comunidade científica não gostou de quase ser dizimada por causa de um slogan parvo, vindo da cabeça de um criativo sem grande noção das possíveis consequências do que escreveu.

Não havia, portanto, maneira de a cola Araldite continuar a ser um êxito de popularidade. Agora – ao que sei – o produto é vendido praticamente só a profissionais da construção e de carpintaria, bem como a adeptos trabalhos de bricolage. Segundo o que apurei, já quase ninguém tenta colar cientistas ao tecto com aquilo (a televisão já não diz que é possível fazê-lo e só os poucos que ainda se lembram do velhinho anúncio é que ainda vão aos laboratórios tentar apanhar um cientista incauto para o efeito).

É uma grande injustiça. A máquina Polaroid tem fama e não tem proveito, que é como quem diz que, apesar de imensamente popular, já não é produzida e, por isso, entrou em extinção. Já a Araldite (que, na minha opinião, se não é suficientemente boa para colar cientistas ao tecto, não serve para nada mais do que outra qualquer cola) tem o proveito sem qualquer fama, ou seja, persiste mesmo que com uma reputação bem abaixo do minimamente aceitável. Constato, assim, que a vida (que é feita de constatações) não é justa, na verdade.

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PS: Fora do assunto em epígrafe, constato também que Ike Turner (personalidade da música americana e ex-marido de Tina Turner) morreu recentemente. A Violência Doméstica perde, deste modo, uma das suas figuras mais proeminentes. Estou certo de que o sector está de luto e vai sentir muito a sua falta.