Já não há Polaroids para colar ao tecto


Diz-se que a vida é feita “disto e daquilo”.

Para além de lamentar profundamente o facto de nunca ninguém me ter definido com exactidão o que era “isto” ou “aquilo”, eu atrevo-me a acrescentar que a vida é feita (também) de constatações.

Ao constatar o óbvio e/ou o menos óbvio, estamos a assimilar conhecimentos, no mínimo, porque até ao momento da constatação não sabíamos (ou não tínhamos percebido que não sabíamos) o que acabámos de constatar. Ou qualquer coisa do género…

Por exemplo, eu acabo de constatar que já não se fazem máquinas Polaroid. A empresa criadora do conceito de fotografia instantânea disponível para todos abriu falência e fechou as portas (curioso como o fecho de uma coisa significa sempre a abertura de outra, e vice-versa).

Ao constatar este facto, uma significativa parte de mim (a parte que, de facto, se preocupa com este tipo de coisas) ficou devastada. Principalmente porque estava mesmo a precisar de uma máquina Polaroid e agora, “descontinuada” (é o termo usado pelos funcionários das lojas de fotografia) que foi a produção do produto, torna-se uma tarefa extremamente complicada encontrar agora uma máquina para comprar, mesmo que seja ainda um artigo super popular.

Simultaneamente, apercebo-me de que nunca mais ouvi falar das colas Araldite. Uma rápida pesquisa na net “diz-me” que, ao contrário das Polaroids, o produto não foi “descontinuado” e ainda existe, embora nunca mais se lhe tenha feito publicidade. Aliás, a falta dessa publicidade é tanto mais notada pelo facto de ser mítico o anúncio às colas Araldite que há cerca de vinte anos surgiu nos ecrãs portugueses: Araldite - Capaz de colar cientistas ao tecto. Como seria possível esquecer este conceito?

No entanto, estou em crer que terá sido esse mesmo conceito que determinou o “desaparecimento” (apenas aparente, é certo) da Araldite. Acho que lhes correu um bocado mal a publicidade enganosa resultante de anunciar que seria possível colar cientistas ao tecto com os dois tubos de cola, cujos conteúdos (combinados) resultariam numa substância infalivelmente colante. Penso que, mais tarde ou mais cedo, toda a gente percebeu que a Araldite, afinal, não era suficiente para colar cientistas ao tecto. E ninguém gosta de ser vítima de publicidade enganosa.

Se, por influência do spot publicitário, houve mesmo gente a tentar colar cientistas ao tecto para verificar a veracidade do slogan do anúncio (talvez tenha sido por isso que terá havido um período em que os cientistas quase entraram em extinção - por causa dessa obstinada caça ao cientista para colá-lo ao tecto), cedo foi possível apurar que o cientista que se tentou colar ao tecto caiu “redondo”, de cabeça no chão. A comunidade consumidora não gostou de se sentir burlada e a comunidade científica não gostou de quase ser dizimada por causa de um slogan parvo, vindo da cabeça de um criativo sem grande noção das possíveis consequências do que escreveu.

Não havia, portanto, maneira de a cola Araldite continuar a ser um êxito de popularidade. Agora – ao que sei – o produto é vendido praticamente só a profissionais da construção e de carpintaria, bem como a adeptos trabalhos de bricolage. Segundo o que apurei, já quase ninguém tenta colar cientistas ao tecto com aquilo (a televisão já não diz que é possível fazê-lo e só os poucos que ainda se lembram do velhinho anúncio é que ainda vão aos laboratórios tentar apanhar um cientista incauto para o efeito).

É uma grande injustiça. A máquina Polaroid tem fama e não tem proveito, que é como quem diz que, apesar de imensamente popular, já não é produzida e, por isso, entrou em extinção. Já a Araldite (que, na minha opinião, se não é suficientemente boa para colar cientistas ao tecto, não serve para nada mais do que outra qualquer cola) tem o proveito sem qualquer fama, ou seja, persiste mesmo que com uma reputação bem abaixo do minimamente aceitável. Constato, assim, que a vida (que é feita de constatações) não é justa, na verdade.

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PS: Fora do assunto em epígrafe, constato também que Ike Turner (personalidade da música americana e ex-marido de Tina Turner) morreu recentemente. A Violência Doméstica perde, deste modo, uma das suas figuras mais proeminentes. Estou certo de que o sector está de luto e vai sentir muito a sua falta.

0 inSensinho(s) assim...: