O Entregador

*** Da afamada série de escritos «O InSenso e a Cidade» ***


Para quem vive na cidade, isto é só mais uma constatação daquelas banalíssimas realidades do dia-a-dia. Para quem vive – sei lá – nos arredores de uma cidade… também o será. Para quem vive numa vila, isto também já não será de todo uma novidade. Mas para quem vive na aldeia, sim… isto poderá e deverá ser interessante (porque é novo) e até, diria, educativo.

Por isso, hoje dirijo-me especialmente a José Bulhosa Marques, habitante de Beselga, junto à pitoresca Serra do Verigo, na freguesia de Ferreirim (Viseu), para quem este InSenso poderá abrir as portas do conhecimento (quiçá profundo) da “espécie” de que falarei adiante (já no próximo parágrafo, julgo eu… que é para não tornar este intróito algo semelhante à 1ª Epístola de São Paulo aos Coríntios). Portanto… Senhor José Bulhosa Marques… preste atenção, por favor, ok?...

Entregadores de publicidade… esses labutadores de referência, cuja mera existência e forma de actuar pode bem ser tema de tese para quem se preste a perder tempo a fazer teses com temas lamentavelmente parvos. São, no mínimo, peculiares, estes seres em vias de… propagação e/ou (se o vermos por outro prisma) cuja extinção não se vislumbra num futuro tão próximo assim.

Já tendo algum conhecimento acerca deles, os entregadores de publicidade não deixam de surpreender, a cada dia que passa – principalmente agora que “convivo” (literalmente) todos os dias.

Imagine, Sr. José, que tem uma caixa do correio e que lhe entregam correio todos os dias. Sim… bem sei que tanto uma como outra são coisas que não existem aí em Beselga. Mas… tente imaginar. Obrigado. Agora, imagine que para além da cartita da luz, da água e da prima Belarmina (que está em Castelo Branco e lhe pede dinheiro todos os meses) lhe deixam na caixa uma data de papéis coloridos com letras e números grandes, também elas (e eles [os números]) coloridas. E, já agora, imagine que tem mesmo de ir à caixa de correio mais do que uma vez por dia (eu sei que estou a exigir de si muito esforço…), só para tirar de lá a imensa papelada que não lhe interessa nem dá jeito nenhum, caso contrário, nunca mais consegue receber a carta da Belarmina…

Pronto. É isso que o entregador de publicidade faz. Enche as caixas de correio com papelada que não interessa a ninguém (a não ser que o Sr. Zé Marques queira ir ao Gerês e ao Santoínho passear à borla, com ida e volta no mesmo dia, e ainda ganhar um faqueiro todo pintas – não sendo certo se o paga ou não…).

Mas para fazer o trabalho dele, o entregador precisa ter alguns requisitos e de cumprir alguns rituais. A saber…

- O entregador tem de ter problemas de visão.
Sim… porque, caso contrário, se ele vir BEM os autocolantes amarelos (“pouco garridos” e “muito discretos”) a apelar à não colocação de publicidade nas caixas de correio… eles não podem desempenhar (como desempenham) a sua função na perfeição.

- O entregador tem de ser meio distraído.
Quando a função do entregador é deixar papéis publicitários (também eles perfeitamente inúteis) presos na escova limpa-pára-brisas dos carros, ele não pode dar-se conta de que alguém possa estar NO INTERIOR da viatura, mesmo que essa pessoa lhe chame a atenção gesticulando, berrando ou mesmo buzinando intensamente. Isto, sob pena de (mais uma vez) não cumprir com as suas obrigações.

- O entregador tem de tocar a TODAS as campainhas dos prédios antes de entrar.
Precise ou não precise de o fazer, o entregador faz tocar todas as campainhas, sejam duas ou mais de vinte. É um ritual. Tal como é não dizer rigorosamente nada quando alguém, morador no prédio, pergunta «Quem é?». É necessário recordar que – mesmo estando a porta do prédio aberta – o entregador prime TODOS os botões de campainha. Essa verdadeira “necessidade” está ainda por explicar cientificamente.

- O entregador tem de correr bem.
Para quê? Para correr desenfreadamente em direcção a uma qualquer porta de prédio que esteja a fechar-se, com o intuito de não ter de esperar que algum morador lha abra. Conseguido o objectivo de chegar (ofegante) à porta antes de ela se fechar, o entregador (obviamente) toca todas as campainhas do prédio.

- O entregador pode e deve ser despachado
Sendo que por “despachado” deve entender-se ser lesto a cumprir a(s) sua(s) tarefa(s) e a… despachar os papéis que tem para entregar. Quando ainda faltarem para aí uns dois ou três volumes de panfletos para distribuir e pouca vontade para os entregar («Que bom é ter um panfleto para entregar e não o fazer!»… já diria o poeta…) não pode haver hesitação em “impingi-los” na mesma, colocando aos três e aos quatro em cada caixa… ou deixando mesmo os volumes (ainda devidamente atados) ali à porta do último prédio visitado (que por vezes até é o primeiro), servindo de tapete comunitário.

Por isso, Sr. Zé Bulhosa Marques… dê-se por feliz pelo facto do carteiro só aí passar uma vez por semana e só lhe leve a cartinha da Belarmina, da luz e da água (que, assim com’assim, fazem todas o mesmo… pedir-lhe dinheiro). Considere essa correspondência a sua muito própria “papelada que não interessa a ninguém” e se alguma vez lhe baterem à porta (depois de já terem batido a todas as portas da aldeia) e não responderem quem é… já sabe. É o entregador de publicidade… e ele vai meter-lhe uma data de papéis coloridos por debaixo da porta.
- - - UPDATE - - -
A provar que, mesmo debaixo de uma qualquer pedra, pode esconder-se um conspiardor de uma secreta organização inominável e tal e coisa... eis que, chegado hoje (2 dias - e logo no 1º dia útil - após a publicação deste texto), me deparo com uma... surpresa na caixa do correio. Entre os mais de 10 panfletos publicitários novinhos em folha lá colocados durante o dia... um papel de rebuçado de mel "Lusiteca" (doce iguaria fabricada ali para os lados de Mem Martins). Sem rebuçado, evidentemente... só o papel/plástico que o embrulha mesmo. Duas duas uma!... Ou a classe dos entregadores está piursa comigo e esta é a primeira retaliação (será que virão aí mais?... e que formas tomarão de futuro?... invólucros de Callipo e Perna-de-Pau?!?) ou tenho de acrescentar mais um requisito à lista apresentada no texto: o entregador tem de ser altruista porque, quando tem um papel de rebuçado a mais... não hesita em abdicar dele para o entregar aos outros, usando a sua apurada técnica de distribuição para deixar o dito papelinho na caixa de correio de quem "mais necesita" dele, e perante tal gesto... o destinatário do papel de rebuçado de mel "Lusiteca" só pode sentir-se nos píncaros do mundo, admirando o verdadeiro altruismo do entregador e dedicando-lhe um sincero "Bem haja, sr. entregador de publicidade!... Quem (ou... o que) seria eu sem si!". Muito e Muito Obrigado pelo papelinho do rebuçado! Fica aqui guardado como 'souvenir'... bem juntinho da mesa de cabeceira.

2 inSensinho(s) assim...:

Maria disse...

A cidade é muita insensata, mas poucas vezes paramos para observá-la. O "O Insenso e a Cidade" ajuda a ver a cidade...com outros olhos.

so disse...

havia um desses filhos da mae que me acordava todas as manhas quando eu estava no porto! e eu para castigo nunca lhe abria a porta!